quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ciência, sabedoria e experiência


I- Complexidade e equilíbrio

Ler o “Pensamento da Complexidade” de Edgar Morin 1(anexo) nos remete a questões práticas tanto no campo da educação, quanto no campo da administração e análise de sistemas. Abordar cada uma destas implicaria no desenvolvimento de um extenso trabalho, o que foge ao escopo deste breve documento. Cabe aqui apenas abordar questões que possam aglutinar conceitos e referências que interessem à reflexão e ao desdobramento do pensamento sobre sistemas complexos.
A partir da percepção que o conhecimento, e mesmo a ciência como sua forma organizada, é extensão de competências e o desdobramento de funções biológicas, sem que isso implique descartar crenças e convicções religiosas, é possível perceber que a busca pelo equilíbrio energético e a eliminação de perdas e desperdício, passa ser o curso da evolução humana, ainda que à custa de, episódios de perda e destruição, através de um processo empírico de tentativas e erros. Os desastres na evolução dos seres vivos no planeta vão deste a extinção do Cambriano-Ordoviciano, por razões que a ciência está há muito para descobrir, até as Guerras Mundiais e outras em grande e pequena escala, que estão igualmente a desafiar sociólogos, historiadores, economistas, psicólogos e demais cientistas. A primeira extinção aparentemente se deu pelo esgotamento de oxigênio nos oceanos criados pelos próprios seres vivos, e as guerras nem resta dúvida de quem sejam obra.

Estes eventos separados por uns quinhentos milhões de anos, um nada em termos de evolução, tem como base a contínua e perene dualidade competição-colaboração. Estes dois sentidos do comportamento, estas duas direções intrínsecas da natureza viva, em algumas ocasiões fogem de seu sensível equilíbrio e desencadeiam desastres.

Pode ser percebido então que a manutenção do equilíbrio entre competição e colaboração, depende continuamente de evolução. Somente em estado de evolução este equilíbrio se verifica. O equilíbrio deriva da oposição homeostática à inexorável tendência a que está submetida a matéria, a degradação material, a entropia. Ocorre que este equilíbrio se deve a capacidade dos seres vivos a tentar garantir a sua reprodução, e isto é feito por processo colaborativo. Humberto Maturana e Francisco Varela, biólogos chilenos, formularam o princípio da autopoiese, que mais tarde evolui para o pensamento filosófico de Deleuze2. Tal princípio estabelece o equilíbrio do ser vivo com o meio, equilíbrio este entre a degradação e a colaboração reprodutiva, que evoluiu até a reprodução sexuada. Maior e mais forte componente da evolução humana, seja no domínio do consciente, seja no domínio do inconsciente, e que move a maior parte das atividades humanas. Seja em direção a reprodução colaborativa, seja em direção a competição.

Tomando como base o conceito de “equilíbrio autopoiético”, podemos então buscar o que podemos chamar de tentativa de equilíbrio, através do “conhecimento pertinente” como o denomina Edgar Morin, equilíbrio este que, minimizando desperdício, imitando a natureza, nos afaste dos conflitos e da incompreensão da natureza humana em toda a sua extensão, desde a sua condição de ser biológico até a sua aglutinação social, sob as mais diversas formas, desde a vizinhanças do prédio até ao país e ao coletivo ideológico. Para tanto é necessário não mais ver o mundo sob a perspectiva fragmentária mas percebendo a complexidade de sua existência. Como dizia Dag Hammarskjöld,3 “olhar para as estrelas, através da copa das árvores”. Edgar Morin organizou e formalizou este pensamento, o pensamento da complexidade, como forma de evitar a fragmentação da percepção da realidade; daí evitando os conflitos destrutivos. Entendo que aí reside uma das principais missões dos educadores modernos: fazer perceber a realidade4 e capacitar a melhorá-la.

II- Interdependência e Complexidade

O conceito da interdependência, derivado do princípio da autopoiese como dito anteriormente, parte do fato que qualquer sistema produtivo, só e somente só alcançará o seu objetivo, gerar um produto repetidamente, se estabelecer com o mundo externo, via sistemas colaborativos, relações múltiplas de troca e de energia e, por sua vez, ser colaborativo com outros sistemas. Ou seja, só terá sucesso se colaborar com outros sistemas e se se comportar colaborativamente com demais outros..
Para exemplificar este princípio fizemos no passado (no livro “A árvore da acácia”) uma analogia com um sistema de produção que a natureza engendrou para produção de energia para a célula utilizando um outro pequeno sistema, ou pequeno órgão (organela), uma outra célula com a função de tratar da sua “respiração”, ou metabolismo. Os cientistas acreditam que essa organela, a mitocôndria, inicialmente era um ser procarioto que invadiu ou foi fagocitado por outro organismo primitivo. Não se sabe o real motivo, mas esse procarioto não foi digerido e as duas células passaram a viver em simbiose. O mecanismo bioquímico que funciona nesta organela, foi descrito pelo cientista William Krebs (1918-2009) Prêmio Nobel de 1992, daí o nome que é dado a este mecanismo, descrito como ciclo do ácido tricarboxílico, ou Ciclo de Krebs.

O principal produto ou função da mitocôndria é agir como via final comum de oxidação das moléculas orgânicas (carbonatos, lípidos, aminoácidos), através da acetil-CoA e seu substrato. Ou seja, tendo como produto principal a molécula de ATP , o faz gerando ainda produtos associados como é o caso do ácido pirúvico, e este por sua vez é utilizado na produção de outros três produtos associados: acetil-coenzima A, gás carbônico e hidrogênios. O CO2 é liberado e os hidrogênios são capturados por uma molécula de NADH25 formadas nessa reação.

Como podemos ver a natureza engendrou uma solução através da associação de sistemas colaborativos para o metabolismo, através de um outro sistema previamente existente, e passou a gerar ainda outros subprodutos. A produção de ATP pela mitocôndria para uma célula de um outro sistema, se faz associando colaborativamente outros subsistemas gerando outros subprodutos, que são também utilizados no processo produtivo.

Não é objeto deste documento expor a perfeição do equilíbrio termodinâmico das reações que ocorrem neste sistema, ou melhor, nestes sistemas. Mas esta analogia descrita em 2000 no “Arvore da acácia” serviu como “prova” de cooperação simbiótica que a natureza deu, onde dois sistemas distintos aplicaram o princípio de autopoiese para gerar um terceiro.

Para que houvesse sucesso neste processo estabeleceu-se uma interdependência entre vários estratos dos sistemas vivos, complexos por natureza. Tal interdependência exerce uma complexidade que é própria para a sustentação da vida. Complexidade é a marca da vida; vida implica em complexidade.


III – Equilíbrio e Antagonismo

Como antes mencionado, a sobrevivência, ou vivência melhor dizendo, dos sistemas complexos implica no equilíbrio entre cooperação e competição entre sistemas. Com esta informação podemos deduzir que a sobrevivência de um sistema implica por sua vez na sobrevivência de vários.

Com um pouco mais de dedução podemos também afirmar que o conjunto dos sistemas vivos, e aí se inclui a sociedade humana, é democrática na sobrevivência e na morte, pois que depende a sobrevivência de metade mais um de sua população. È claro que estando se utilizando agora desta metáfora, não estará distante a convicção de que existirá um número tal que menor que este todo o sistema vivo colapsa. Aliás, todo o sistema natural ou artificial depende e está sujeito a esta proporcionalidade.

A percepção desta proporcionalidade foi realçada a partir da obra do cientista austríaco Ludwig von Bertallanfy que cria a “Teoria Geral dos Sistemas” em 1950 e que mostra os níveis populacionais em culturas sendo equilibrados por processos de competição versus colaboração, absolutamente visível na curva “S”, ou curva logística. Ver o magnífico trabalho Modelo de von Bertalanffy generalizado aplicado as curvas de crescimento animal”6

Como podemos perceber, com base no exposto até aqui, é que a colaboração e competição são processos que estão intrinsecamente ligados na manutenção da vida. Na bioquímica tal dualidade se apresenta como sistemas agonistas e antagonistas que convivem e colaboram para a estabilidade. O conhecimento sobre antagonismo em sistemas bioquímicos é desenvolvido na pesquisa científica na busca da saúde 7. Os processos de estabilidade sempre estarão garantidos pela existência de antagônicos. Ou seja, competitivos mas colaborativos.

A partir da aquisição do conceito biológico “agonista / antagonista” podemos então estendê-lo a ao conhecimento de sistemas de mais alto nível, seja na psicanálise, seja na psicologia e também aplicadas ao cabedal pedagógico quando se defronta com questões da alteridade. O outro antagônico passa ser elemento de construção no lugar de destruição. Pode-se dizer que perceber tal complexidade no devir da atividade pedagógica implicará na prática dos princípios anunciados por Edgar Morin.

Procuramos pavimentar o caminho da epistemologia da complexidade com analogia biológica, mas sabemos que poderíamos partir de análogos de outras áreas do conhecimento. Assim como a Teoria Gral dos Sistemas de Bertallanfy serve à evolução da ciência da administração que está permeada por complexos sistemas da atividade econômica, da logística, etc..., a ciência da Educação estará submetida a complexidade das agonistas ações didáticas e de seus antagonistas processos da criação e da imaginação, que ao mesmo tempo que competem pela atenção e dedicação, auxiliam na percepção da realidade em que se inserem “ensinantes e “aprendentes”, como diria Paulo Freire.

V – A teoria e a experiência

Ainda que baseado nosso pensamento nos conhecimentos herdados desde outras categorias, como vimos até aqui, nós os “ensinantes”, temos a responsabilidade de incentivar e de viabilizar a descoberta, a criatividade e a curiosidade nos corações e mentes dos “aprendentes”. Em síntese, temos que, como se refere Hannah Arendt, “ter independência do conhecimento”.
Ainda que entendendo, ou tentando entender, a dualidade do processo cooperativo das contradições, nem somos obrigados a nos ater as categorizações, nem tampouco depender de experiências alheias. Pode parecer ser uma contradição com o princípio de evolução da ciência através da acumulação de conhecimento; mas não é, pois é através de rupturas e saltos que se dá a evolução. Quando se trata de evolução do conhecimento, o equilíbrio quer dizer mesmo evolução, ou ruptura. E somente se consegue a ruptura evolutiva, com a busca da sabedoria. Apresentamos exemplos de analogias com sistemas biológicos, mesmo sem ter a certeza absoluta das comparações. Não se trata aqui de ter certeza, de se apoderar da verdade, não é uma “verdade matemática”; apenas vemos que buscar a sabedoria implica em aceitar as contradições e inconsistências da “verdade estabelecida”.
A própria evolução matemática acaba esbarrando em contradição, e levou muito tempo para ser percebida, apenas nos anos trinta do século passado (século XX), e teorizada por Kurt Gödel nos dois teoremas conhecidos como os teoremas da incompletude de Gödel, abaixo simplificadamente apresentados:

Teorema 1: "Qualquer teoria ...capaz de apresentar algumas verdades básicas de aritmética não pode ser simultaneamente completa e consistente. Isto é, sempre há em uma teoria dita consistente, proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas nem negadas."
Teorema 2: "Uma teoria, recursivamente enumerável e capaz de expressar verdades básicas da aritmética e alguns enunciados da teoria da prova pode provar sua própria consistência se, e somente se, for inconsistente.”
É por este motivo então que, baseado na essência destes dois teoremas, que, mesmo acreditando honestamente no que se apresentou, somos obrigados humildemente a perseguir a sabedoria, mais do que o conhecimento, principalmente quando a nossa missão é apresentar e desafiar a complexidade nas mentes “aprendentes”.

Passar da informação para o conhecimento, requer a busca das contradições e dos agonistas/antagonistas; mas passar do conhecimento para a sabedoria requer a experiência. É famosa a frase de Gilles Deleuze : “ Jamais interprete, experimente”.
Cabe ao processo pedagógico, se realmente quer chegar a um resultado que possa se chamar de sucesso, tentar estabelecer a contradição, copiar a natureza que evolui e se equilibra por meio de opostos, cooperação / competição, agonistas / antagonistas, sempre na busca da utópica verdade. Cabe experimentar.

ANEXO

Sete princípios de Edgard Morin
As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão
O conhecimento deve preparar o indivíduo para enfrentar os riscos e as situações da vida diária com sabedoria e discernimento. Para tal, é necessário que a educação desenvolva as características cerebrais, mentais e culturais para não induzirem ao erro ou ilusão.
Os princípios do conhecimento pertinente
É primordial que os educadores apresentem aos seus alunos realidades locais ao mesmo tempo em que as contextualizem com acontecimentos do mundo. Isso porque acontecimentos e conhecimentos fragmentados dificultam o entendimento e o conhecimento global.
Ensinar a condição humana
O ser humano é uma unidade complexa. É um ser que ao mesmo tempo é físico, biológico, psíquico, cultural, social e histórico. Assim, as disciplinas escolares devem integrar os conteúdos promovendo o desenvolvimento do humano na sua totalidade.
Ensinar a identidade terrena
Mostrar aos educandos que o acontecimento da localidade interfere na totalidade e que tudo está interligado, ou seja, as decisões e atitudes de um local podem atingir toda a humanidade pois vivemos em uma imensa comunidade, com destino comum.
Enfrentar as incertezas
É preciso saber lidar com as incertezas, limitações, imprevistos e novidades que surgem a cada dia. A escola deve preparar os alunos para que sejam capazes de enfrentar esses desafios inesperados, fortalecendo as suas estruturas mentais e assim resolvendo seus problemas de modo construtivo baseado em situações anteriores.
Ensinar a compreensão
A comunicação não garante a compreensão e um dos obstáculos da educação é a compreensão. Muitas vezes o mal entendido gera conflitos e a diferença de cultura, a falta de respeito à liberdade e o egocentrismo são fatores que devem ser observados para compreender o outro e o eu. A compreensão favorece o pensar pessoal e global.
Para Morin,“se descobrirmos que somos todos seres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos descobrir que todos necessitamos de mútua compreensão.” (p.100)
Faz-se necessário compreender o outro para que nesta troca também sejamos compreendidos.


Mitocôndria
As mitocôndrias são as organelas celulares responsáveis pela respiração celular, processo no qual as células conseguem produzir ATP por meio da oxidação de moléculas orgânicas. O ATP é a molécula que armazena energia para as principais atividades celulares. Graças a essa função, o número de mitocôndrias é maior em locais que requerem alto gasto de energia. As células do fígado, por exemplo, apresentam em média duas mil mitocôndrias.
Essas organelas são pequenas, apresentando-se com 1,5 a 10 mícron de comprimento e até 1 mícron de diâmetro, tamanho similar ao de bactérias. Seu formato é variável, mas normalmente possuem a forma de bastonete e são encontradas em basicamente todas as células eucarióticas.
A mitocôndria apresenta dupla membrana lipoproteica, sendo a mais externa lisa e a mais interna com invaginações que formam a crista mitocondrial. A membrana interna é um local de síntese de ATP e, além disso, delimita a matriz mitocondrial, local onde estão presentes o DNA e RNA mitocondriais, enzimas que participarão da respiração celular e ribossomos. O DNA nessas organelas é circular, o que lembra o DNA de bactérias.
A presença de DNA próprio confere a essas organelas algumas peculiaridades. As mitocôndrias possuem capacidade de autoduplicação, dividem-se por fissão. Além disso, são chamadas de semiautônomas, pois conseguem sintetizar algumas proteínas necessárias a elas, entretanto não produzem todas.
Vale destacar que o DNA mitocondrial é uma herança apenas materna, pois, no processo de fecundação, as mitocôndrias paternas degeneram-se e, portanto, apenas as presentes no gameta feminino foram multiplicadas durante a formação do embrião. Sendo assim, a sequência desse DNA é idêntica para todos os nossos parentes por parte de mãe.
Em razão da presença de DNA e RNA próprios, além da dupla membrana, capacidade de autoduplicação e semelhança genética e química com algumas bactérias, os cientistas acreditam que essa organela inicialmente era um ser procarioto que invadiu ou foi fagocitado por outro organismo primitivo. Não se sabe o real motivo, mas esse procarioto não foi digerido e as duas células passaram a viver em simbiose. Essa teoria é chamada de teoria endossimbiótica e também explica a origem dos plastos nas células vegetais. É interessante notar que em uma célula vegetal, por exemplo, são encontrados três tipos de DNA: o encontrado no núcleo, o encontrado na mitocôndria e o dos plastídeos.
Por Ma. Vanessa dos Santos


1Edgar Morin - “Introdução ao Pensamento Complexo” - Editora Sulina 2011
2Giles Deleuze – Importante filósofo francês, que junto com Guattari explora temas filosóficos ecléticos, como rizoma, evento , diferença, sentido,etc...
3Dak Hammarskjöld, diplomata sueco, ex-Secretário Geral da ONU (1953-1961), falecido em 1961 na atual Zâmbia, quando seu avião foi abatido por um míssil, ou metralhado, não se sabe..
4Ver a obra de Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, todos empenhados na missão evolutiva frente as contradições de seu mundo.
5 Nicotinamide adenine dinucleotide) ou nicotinamida adenina dinucleotídeo ou ainda difosfopiridina nucleotídeo é uma coenzima que apresenta dois estados de oxidação: NAD+ (oxidado) e NADH (reduzido).
6 -Juliana Scapim - Departamento de Matemática Aplicada, IMECC - UNICAMP,
- Rodney C. Bassanezi - Centro de Matemática,Computação e Cognição, UFABC, Santo André/SP, Brasil
7Ana Maria de Oliveira Prof. Dra.Dep. Farmacologia /FCFRP/USP : “ Effect of pretreatment with losartan or converting-enzyme-inhibitor on the reactivity of rat carotid artery after the positioning of a silicone collar.. In: 2nd International Forum on Angiotensin II Receptor Antagonism, 2001, Monte Carlo. Abstract Book, 2001. v. -. p. 25. “