sexta-feira, 30 de agosto de 2013

No café da manhã

Ainda me lembro da Bienal de 1954, logo depois veio o Carnaval no Rio de Janeiro...
Estava falando de música, uma nega maluca me apareceu. Vinha com filho colo dizendo pro povo que o filho era meu, não senhor...Estou usando, mudando sim, a letra da famosa música de Fernando Lobo e Evaldo Ruy (acho que a grafia está certa), "Nega Maluca", que ficou famosa no Carnaval de 1950 e vários depois, até chegar aos nossos dias, nos blocos que hoje renascem para devolver o espírito, que era a marca registrada do carioca simplório e alegre de idas eras. Na letra, Fernando Lobo diz "estava jogando sinuca"e agora transformo o jogo de sinuca, que distrai e concentra ao mesmo tempo, em "falando de música".  Então, falando de música, segue o samba daqueles tempos.
Como na última postagem estava em 1954, não poderia deixar de falar no compositor, artista plástico, homem que sempre admirei, na juventude e até agora após quarenta anos de sua última despedida, Monsueto. Artista que nasceu na Favela do Pinto e chegou ao estrelato na finda TV Rio e nos salões do Copacabana Palace.   No Carnaval de 54, logo depois de minha ida a São Paulo, para comemorar o Quarto Centenário e desfrutar da polka (até agora ainda não sei se polka ou dobrado) onde Garoto empresta seu gênio, Monsueto lança a música cuja melodia até hoje admiro e a memorizo orquestrada e arranjada sinfonicamente, "A fonte secou". A letra começa assim: " eu não sou água pra me tratares assim, só na hora da sede é que procuras por mim, a fonte secou...." e por aí vai, rica em harmonia e em versos. Sei que Monsueto a compôs em parceria com outros, igualmente geniais, mas a sua figura era ímpar na graça e na maneira de interpretar.  Sua inspiração melódica me faz agora ouvi-la com arranjo sinfônico, mas com a percussão, o tamborim ao fundo, para que não perca a alma carioca do sambista da Favela do Pinto.
Várias vezes cantei "A fonte secou", no café da manhã, com minha sogra, ela amante da música e da alma daquele negão imenso; cheio de ginga, de ziriguiduns, castigando, dizia ele, nos sambas, obras primas que me fazem rever as sensações de 1954. A polka do Quarto Centenário, misturadas ao samba de morro, absolutamente sintonizados com Villa Lobos, pois um veio do outro, ou eram a mesma coisa, mais do que estranha veio a ser a irmã mais nova do meu samba carioca. Samba, que juntamente ao maneio genial do cateretê, do coco, das emboladas, xaxados, batuques, catiras, canções gauderias, baião, vaneirão, guarânias, lambadas, e toda variedade imensa de estilos e ritmos só fez arraigar, na minha alma carioca, a liberdade de estilos experimentada no Ibirapuera. Liberdade da alma que ouvia e cantava Monsueto no café da manhã. Manhãs onde pude várias vezes devolver as saudades das melodias e desfrutá-las com a vovó Augusta Edwiges Elizabeth Bruns, companheira de sambas e cantigas até os seus momentos finais num quarto de hospital. Até o fim. Carioca kölnisch  assumida, sabia das coisas, adorava Monsueto que nem eu....


quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Amor á arte

Ontem lembrei da festa do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Lembrei da música, lembrei de personagens importantes da minha história, mas deixei para hoje relatar uma emoção que hoje se repete. Se há sessenta anos atrás ela foi intensa, hoje, todos estes anos depois ela não é menor, é diferente. É diferente, pois nela se insere o intelecto e não não tem mais o deslumbramento que só a dignidade da infância permite. Estou vendo, com os olhos da imaginação agora, a pintura exposta no Salão da Bienal do Ibirapuera de 1954, “Guernica”, de Pablo Picasso.
Acho que era uma réplica, pois a original nunca saiu da França penso. A mera visão da infância já lhe dava uma dimensão enorme, mas era a cara do cavalo morrendo, a lâmpada acesa, que me transmitiu um sentimento ainda não codificado pela vida adulta. Mas que me impressionava de forma silenciosa, pois além da intensidade cúmplice com o autor daquela estranha maravilha, ainda tinha a censura dos que não a viam, senão como uma distorção, uma aberração, incompatível com os limites da visão menor dos adultos que me cercavam, ainda míopes de cultura. Não poderia entender naquela época que eram limites; impostos pelo medo à liberdade, diria Erich Fromm. Que eram limites, pois já havia a pública e imensa demonstração de arte, imensa liberdade e severa estética do “Monumento aos Bandeirantes” de Victor Brecheret, o “não empurra” jocosamente apelidado, mas que havia me impressionado uma semana antes. Não havia visto nada parecido no Rio de Janeiro, cidade em que nasci e ainda vivo. O mais arrojado monumento que tinha visto por aqui época era o Palácio Capanema.
Voltando ao “Guernica” e a visita a exposição da Bienal em 1954; a emoção diante de tantas transgressões, mas ao mesmo tempo, diante de tanta beleza me influenciou para o resto da vida. As transgressões eram a própria essência da evolução. Se na época o evolucionismo tentava explicar a vida como sucessiva sequencia de infinitésimos acréscimos, a arte de Picasso, Brecheret e dos outros expositores, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Oswaldo Goeldi, Haarberg e outros vários, mostrava que esta se dava aos saltos, transgredindo cânones, ultrapassando limites e violando regras que foram impostas como “estéticas”. Foi preciso que várias décadas de ciência se passassem para perceber os saltos da evolução biológica, da antropológica e todas as outras lógicas. A estética vigente e os prêmios até então, nada mais eram que um mimo aos bem-comportados dos salões sem grandeza. Como a infância está infensa a estas armadilhas do pseudo-estético pude então desfrutar da Bienal, sem saber que seria para sempre. Tal salto me ajudou a ver mais longe, por ver de cima, a grandeza de outros artistas em outras sensações. Daí foi mais fácil ver e ouvir Villa Lobos, Frutuoso Viana, Guerra Peixe, Valdemar Henrique, Radamés Gnatalli, Heckel Tavares, que para mim transformaram em sons as sensações da Bienal.
Hoje me sinto livre para transgredir na música, na pintura, na dança, que considero a mais complexa e de mais difícil execução e percepção e até na literatura, pois será muito difícil sentir outra emoção de 1954. A infância está muito longe. Hoje em meio a tantas componentes de mercado, de diferenciação técnica e de estética, onde a sensação fácil é mais valorizada que a emoção, fico à espera do valoroso técnico, do esforçado artista, com coragem para transgredir. Pois só será eterno aquele que transgredir por amor. Por amor à arte; Lulu Santos não me deixa mentir.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Memórias e memórias

Estava procurando um assunto na internet e eis que me deparo com algo que me faz pensativo e também me leva à reflexões sobre a arte da música e também das artes plásticas. Da arte como umtodo. A reflexão mais imediata me conduz a visitar o Google Cultural Institute e acabo chegando ao Malmö Konstmuseum. 
Sempre me interessou esta cidade após a leitura de Mika Waltari, quando "O aventureiro" passa por lá. Se estabelece na Suécia e de lá busca novas aventuras. 
O sucesso editorial de Mika Waltari, "O egípcio", "O romano" e muitos outros já traduzidos para a língua portuguesa, me fez ler toda sua obra traduzida e me interessar principalmente pela aventura sueca. A este sentimento se associava a lembrança da atual SAR  Rainha Silvia da Suécia, que quando menina conheci na casa da vovó Julieta. Era o dia 25 de janeiro de 1954. Lá comemoramos e dançamos a polka, ou o dobrado(?),  "São Paulo quatrocentão", composta por Garoto, Avaré e Chiquinho do Acordeón.  Dono de boa memória que sou, tenho vagas lembranças de Sílvia e de Ralf, seu irmão mais velho. Mas tudo é possível de construir na memória pois havia um clima de alegria que a música propiciava, naquela casa da Rua Doutor Vilanova, quase na Maria Antônia. Era a festa do Quartocentenário. O disco tocava na vitrola, era o "São Paulo quatrocentão" executado por Mario Zan, o mesmo da "Chalana". Nem vou seguir por aí.
A associação espontânea destas imagens na memória é que me levaram a agora escrever. Me sinto como o James Burke da série Connections 3. As conexões entre a nemória de Mika Waltari, a Rainha Silvia e a Vovó Julieta, a música de Chiquinho do Acordeon, Avaré e de Garoto, agora me levam a "Gente Humilde". Onde Chico Buarque, Vinícius de Moraes, colocaram letra na imensa música de Garoto. 
Custo até crer que seja possível fazer conexões desta ordem; partindo do Museu  Konstmuseum, em Malmö, na Suécia chegar a "Gente Humilde". E aí chegar a Chico Buarque; e agora chegar a "Banda", que permaneceu o tempo todo tocando a alma. É acabou...
"Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou"
A banda é a arte, que é uma só, plástica, poética, dançante, musical, ...ciao.