Nem precisa fazer apresentações. Basta ler o artigo que recolhi de Conversa Afiada. Para auxiliar a entender, bem posso dizer que a primeira geladeira lá em casa foi uma Colspot comprada no crediário da Sears Roebuck. O ano era 1956. ....Cada palavra deste britânico carioca, Tim Vickery, vale esta lembrança.
"Nunca foi tão bom para você"
O
que adianta ir a Paris para encontrar o meu porteiro ? Não é, Jabor
?
Tim:
a primeira geladeira a gente não esquece
O
Conversa
Afiada
aceita sugestao da navegante Marize:
Oi,
Paulo, tudo bem?
Você
leu o texto de Tim
Vickery,
da
BBC?
Veja, quando puder. É muito bom. Acho até que vale um daqueles
comentários deliciosos que você faz no blog.
Tim Vickery: Minha primeira geladeira e por que o Brasil de hoje lembra a Inglaterra dos anos 60
Acho
que nasci com alguma parte virada para a lua. Chegar ao mundo na
Inglaterra em 1965 foi um golpe e tanto de sorte. Que momento! The
Rolling Stones cantavam I Can’t Get no Satisfaction, mas a minha
trilha sonora estava mais para uma música do The Who, Anyway,
Anyhow, Anywhere.
Na
minha infância, nossa família nunca teve carro ou telefone, e
lembro a vida sem geladeira, televisão ou máquina de lavar. Mas
eram apenas limitações, e não o medo e a pobreza que marcaram o
início da vida dos meus pais.
Tive
saúde e escolas dignas e de graça, um bairro novo e verde nos
arredores de Londres, um apartamento com aluguel a preço popular –
tudo fornecido pelo Estado. E tive oportunidades inéditas. Fui o
primeiro da minha família a fazer faculdade, uma possibilidade além
dos horizontes de gerações anteriores. E não era de graça. Melhor
ainda, o Estado me bancava.
Olhando para trás, fica fácil identificar esse período como uma época de ouro. O curioso é que, quando lemos os jornais dessa época, a impressão é outra. Crise aqui, crise lá, turbulência econômica, política e de relações exteriores. Talvez isso revele um pouco a natureza do jornalismo, sempre procurando mazelas. É preciso dar um passo para trás das manchetes para ganhar perspectiva.
Será que, em parte, isso também se aplica ao Brasil de 2015?
Não
tenho dúvidas de que o país é hoje melhor do que quando cheguei
aqui, 21 anos atrás. A estabilidade relativa da moeda, o acesso ao
crédito, a ampliação das oportunidades e as manchetes de crise –
tudo me faz lembrar um pouco da Inglaterra da minha infância.
Por
lá, a arquitetura das novas oportunidades foi construída pelo
governo do Partido Trabalhista nos anos depois da Segunda Guerra
(1945-55). E o Partido Conservador governou nos primeiros anos da
expansão do consumo popular (1955-64). Eles contavam com um
primeiro-ministro hábil e carismático, Harold Macmillan, que, em
1957, inventou a frase emblemática da época: "nunca foi tão
bom para você" ("you’ve never had it so good", em
inglês).
É
a versão britânica do "nunca antes na história desse país".
Impressionante, por sinal, como o discurso de Macmillan trazia quase
as mesmas palavras, comemorando um "estado de prosperidade como
nunca tivemos na história deste país" ("a state of
prosperity such as we have never had in the history of this country",
em inglês).
Macmillan, "Supermac" na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.
Macmillan, "Supermac" na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.
Em 1958, em meio a greves e negociações com os sindicatos, notou "a raiva da classe média" e temeu uma "luta de classes". Quatro anos mais tarde, com o seu partido indo mal nas pesquisas, ele interpretou o desempenho como resultado da "revolta da classe média e da classe média baixa", que se ressentiam da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres ou da chamada "classe trabalhadora" ("working class", em inglês) na Inglaterra.
Em outras palavras, parte da crise política que ele enfrentava foi vista como um protesto contra o próprio progresso que o país tinha alcançado entre os mais pobres.
Mais uma vez, eu faço a pergunta – será que isso também se aplica ao Brasil de 2015?
Alguns anos atrás, encontrei um conterrâneo em uma pousada no litoral carioca. Ele, já senhor de idade, trabalhava como corretor da bolsa de valores. Me contou que saiu da Inglaterra no início da década de 70, revoltado porque a classe operária estava ganhando demais.
No Brasil semifeudal, achou o seu paraíso. Cortei a conversa, com vontade de vomitar. Como ele podia achar que suas atividades valessem mais do que as de trabalhadores em setores menos "nobres"? Me despedi do elemento com a mesquinha esperança de que um assalto pudesse mudar sua maneira de pensar a distribuição de renda.
Mais tarde, de cabeça fria, tentei entender. Ele crescera em uma ordem social que estava sendo ameaçada, e fugiu para um lugar onde as suas ultrapassadas certezas continuavam intactas.
Agora, não preciso nem fazer a pergunta. Posso fazer uma afirmação. Essa história se aplica perfeitamente ao Brasil de 2015. Tem muita gente por aqui com sentimentos parecidos. No fim das contas, estamos falando de uma sociedade com uma noção muito enraizada de hierarquia, onde, de uma maneira ainda leve e superficial, a ordem social está passando por transformações. Óbvio que isso vai gerar uma reação.
No cenário atual, sobram motivos para protestar. Um Estado ineficiente, um modelo econômico míope sofrendo desgaste, burocracia insana, corrupção generalizada, incentivada por um sistema político onde governabilidade se negocia.
A revolta contra tudo isso se sente na onda de protestos. Mas tem um outro fator muito mais nocivo que inegavelmente também faz parte dos protestos: uma reação contra o progresso popular. Há vozes estridentes incomodadas com o fato de que, agora, tem que dividir certos espaços (aeroportos, faculdades) com pessoas de origem mais humilde. Firme e forte é a mentalidade do: "de que adianta ir a Paris para cruzar com o meu porteiro?".
Harold Macmillan, décadas atrás, teve que administrar o mesmo sentimento elitista de seus seguidores. Mas, apesar das manchetes alarmistas da época, foi mais fácil para ele. Há mais riscos e volatilidade neste lado do Atlântico. Uma crise prolongada ameaça, inclusive, anular algumas das conquistas dos últimos anos. Consumo não é tudo, mas tem seu valor. Sei por experiência própria que a primeira geladeira a gente nunca esquece.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick