quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Amor á arte

Ontem lembrei da festa do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Lembrei da música, lembrei de personagens importantes da minha história, mas deixei para hoje relatar uma emoção que hoje se repete. Se há sessenta anos atrás ela foi intensa, hoje, todos estes anos depois ela não é menor, é diferente. É diferente, pois nela se insere o intelecto e não não tem mais o deslumbramento que só a dignidade da infância permite. Estou vendo, com os olhos da imaginação agora, a pintura exposta no Salão da Bienal do Ibirapuera de 1954, “Guernica”, de Pablo Picasso.
Acho que era uma réplica, pois a original nunca saiu da França penso. A mera visão da infância já lhe dava uma dimensão enorme, mas era a cara do cavalo morrendo, a lâmpada acesa, que me transmitiu um sentimento ainda não codificado pela vida adulta. Mas que me impressionava de forma silenciosa, pois além da intensidade cúmplice com o autor daquela estranha maravilha, ainda tinha a censura dos que não a viam, senão como uma distorção, uma aberração, incompatível com os limites da visão menor dos adultos que me cercavam, ainda míopes de cultura. Não poderia entender naquela época que eram limites; impostos pelo medo à liberdade, diria Erich Fromm. Que eram limites, pois já havia a pública e imensa demonstração de arte, imensa liberdade e severa estética do “Monumento aos Bandeirantes” de Victor Brecheret, o “não empurra” jocosamente apelidado, mas que havia me impressionado uma semana antes. Não havia visto nada parecido no Rio de Janeiro, cidade em que nasci e ainda vivo. O mais arrojado monumento que tinha visto por aqui época era o Palácio Capanema.
Voltando ao “Guernica” e a visita a exposição da Bienal em 1954; a emoção diante de tantas transgressões, mas ao mesmo tempo, diante de tanta beleza me influenciou para o resto da vida. As transgressões eram a própria essência da evolução. Se na época o evolucionismo tentava explicar a vida como sucessiva sequencia de infinitésimos acréscimos, a arte de Picasso, Brecheret e dos outros expositores, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Oswaldo Goeldi, Haarberg e outros vários, mostrava que esta se dava aos saltos, transgredindo cânones, ultrapassando limites e violando regras que foram impostas como “estéticas”. Foi preciso que várias décadas de ciência se passassem para perceber os saltos da evolução biológica, da antropológica e todas as outras lógicas. A estética vigente e os prêmios até então, nada mais eram que um mimo aos bem-comportados dos salões sem grandeza. Como a infância está infensa a estas armadilhas do pseudo-estético pude então desfrutar da Bienal, sem saber que seria para sempre. Tal salto me ajudou a ver mais longe, por ver de cima, a grandeza de outros artistas em outras sensações. Daí foi mais fácil ver e ouvir Villa Lobos, Frutuoso Viana, Guerra Peixe, Valdemar Henrique, Radamés Gnatalli, Heckel Tavares, que para mim transformaram em sons as sensações da Bienal.
Hoje me sinto livre para transgredir na música, na pintura, na dança, que considero a mais complexa e de mais difícil execução e percepção e até na literatura, pois será muito difícil sentir outra emoção de 1954. A infância está muito longe. Hoje em meio a tantas componentes de mercado, de diferenciação técnica e de estética, onde a sensação fácil é mais valorizada que a emoção, fico à espera do valoroso técnico, do esforçado artista, com coragem para transgredir. Pois só será eterno aquele que transgredir por amor. Por amor à arte; Lulu Santos não me deixa mentir.

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