Ontem
lembrei da festa do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo.
Lembrei da música, lembrei de personagens importantes da minha
história, mas deixei para hoje relatar uma emoção que hoje se
repete. Se há sessenta anos atrás ela foi intensa, hoje, todos
estes anos depois ela não é menor, é diferente. É diferente, pois
nela se insere o intelecto e não não tem mais o deslumbramento que
só a dignidade da infância permite. Estou vendo, com os olhos da
imaginação agora, a pintura exposta no Salão da Bienal do
Ibirapuera de 1954, “Guernica”, de Pablo Picasso.
Acho que
era uma réplica, pois a original nunca saiu da França penso. A
mera visão da infância já lhe dava uma dimensão enorme, mas era a
cara do cavalo morrendo, a lâmpada acesa, que me transmitiu um
sentimento ainda não codificado pela vida adulta. Mas que me
impressionava de forma silenciosa, pois além da intensidade cúmplice
com o autor daquela estranha maravilha, ainda tinha a censura dos que
não a viam, senão como uma distorção, uma aberração,
incompatível com os limites da visão menor dos adultos que me
cercavam, ainda míopes de cultura. Não poderia entender naquela
época que eram limites; impostos pelo medo à liberdade, diria
Erich Fromm. Que eram limites, pois já havia a pública e imensa
demonstração de arte, imensa liberdade e severa estética do
“Monumento aos Bandeirantes” de Victor Brecheret, o “não
empurra” jocosamente apelidado, mas que havia me impressionado uma
semana antes. Não havia visto nada parecido no Rio de Janeiro,
cidade em que nasci e ainda vivo. O mais arrojado monumento que tinha
visto por aqui época era o Palácio Capanema.
Voltando
ao “Guernica” e a visita a exposição da Bienal em 1954;
a emoção diante de tantas transgressões, mas ao mesmo tempo,
diante de tanta beleza me influenciou para o resto da vida. As
transgressões eram a própria essência da evolução. Se na época
o evolucionismo tentava explicar a vida como sucessiva sequencia de
infinitésimos acréscimos, a arte de Picasso, Brecheret e dos outros
expositores, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Oswaldo Goeldi, Haarberg
e outros vários, mostrava que esta se dava aos saltos, transgredindo
cânones, ultrapassando limites e violando regras que foram impostas
como “estéticas”. Foi preciso que várias décadas de ciência
se passassem para perceber os saltos da evolução biológica, da
antropológica e todas as outras lógicas. A estética vigente e os
prêmios até então, nada mais eram que um mimo aos bem-comportados
dos salões sem grandeza. Como a infância está infensa a estas
armadilhas do pseudo-estético pude então desfrutar da Bienal, sem
saber que seria para sempre. Tal salto me ajudou a ver mais longe,
por ver de cima, a grandeza de outros artistas em outras sensações.
Daí foi mais fácil ver e ouvir Villa Lobos, Frutuoso Viana, Guerra
Peixe, Valdemar Henrique, Radamés Gnatalli, Heckel Tavares, que para
mim transformaram em sons as sensações da Bienal.
Hoje me
sinto livre para transgredir na música, na pintura, na dança, que
considero a mais complexa e de mais difícil execução e percepção
e até na literatura, pois será muito difícil sentir outra emoção
de 1954. A infância está muito longe. Hoje em meio a tantas
componentes de mercado, de diferenciação técnica e de estética,
onde a sensação fácil é mais valorizada que a emoção, fico à
espera do valoroso técnico, do esforçado artista, com coragem para
transgredir. Pois só será eterno aquele que transgredir por amor.
Por amor à arte; Lulu Santos não me deixa mentir.
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