quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Memória simples


A emoção que proporcionei a minha mulher ao iniciá-la no mundo da música clássica, melhor diria, música boa, já que posso inserir neste grupo e estilo a música folclórica, a música popular, a música de câmera e todo e qualquer estilo que mereça estar no álbum de memórias, ela me recompensou. Ainda vou falar de música popular, rever e-mails que enviei e homenagear artistas e compositores que fazem ou farão sucesso; e mesmo que não façam, assim considero. 
Mas agora quer falar da recompensa que ela me proporcionou quando, em tempos difíceis, pude escrever meu livro "A árvore de Acácia" e que tinha como sub-título "Aaron Hakodesh", que significa a "Arca Sagrada".
O título do livro, mesmo parecendo de natureza religiosa, versava sobre técnicas e engenharia de sistemas aplicadas à representação de produto, na forma de "bill-of-material" no âmbito dos sistemas de gestão industrial. A inspiração para tal nome veio da leitura do trecho bíblico Êx.25: 10-16 que aqui reproduzo:
  • Também farão uma arca de madeira de acácia; o seu comprimento será de dois côvados e meio, e a sua largura de um côvado e meio, e de um côvado e meio a sua altura. E cobri-la-á de ouro puro; por dentro e por fora a cobrirás; e farás sobre ela uma coroa de ouro ao redor;
  • E fundirás para ela quatro argolas de ouro, e as porás nos quatro cantos dela, duas argolas num lado dela, e duas argolas noutro lado.
  • E farás varas de madeira de acácia, e as cobrirás com ouro.
  • E colocarás as varas nas argolas, aos lados da arca, para se levar com elas a arca.
  • As varas estarão nas argolas da arca, não se tirarão dela.
  • Depois porás na arca o testemunho, que eu te darei.


Via a citação bíblica como a primeira referência a uma "lista-de-material", juntamente a "descrição-de-processo", que se constituem em módulos específicos de um sistema mais geral que ora chamamos de "ERP", oriundo dos "MRP" e "MRP II". Intrigante.

Evidentemente esta citação dá margem a extensa axiologia de outros temas, mesmo os religiosos. Mas o que mais me encantou foi a surpresa que tive, após achar que a "madeira de acácia", citada no trecho bíblico não se tratava-se de madeira-de-lei, rara. Ao assistir o programa de David Attenborough, "A vida secreta das plantas" este menciona o processo de propagação e inseminação desta árvore tão comum no ambiente da savana africana: o elefante ingere suas sementes e vai defecá-las intactas a mais de cinco quilômetros de distância, regando-as então com generoso banho de ureia, amônia e fornecimento de toda sorte de nitrogênio que sua urina pode oferecer. A acácia era espécie resistente e comum, rústica e aparentemente sem valor. Pude ler então o significado daquilo tudo. Quase como uma mensagem: "utilize o mais simples e mais comum e então o cubra de ouro" e mais adiante ", lá porás o meu testemunho".  Ou seja, falava da alma humana que simples, rústica, humilde pode carregar um valoroso testemunho.
Confesso que, após escrever quatrocentas páginas, dura e sofridamente reveladoras de intrincados algoritmos, complexas formulações,  a verdadeira lição, o verdadeiro saber  se resumia a seis curtos parágrafos. Não mais.
Demorei meses para aprender uma lição de seis curtos parágrafos. A lição era simples, e mesmo no âmbito da ciência, se lembrar-nos que o princípio reducionista da "navalha de Ockham" fora questionado por Kant e Leibniz, que não entenderam o espírito da coisa, veremos na prática a sua confirmação. Sistemas computacionais e seus programas serão mais precisos e menos sujeitos a falha e erro quão menos linhas contiverem. Quão mais curtos, tendem a ser mais precisos. Afinal o frade franciscano do século XIV, Willian de Ockham, já havia percebido tudo; dizia ele: - "Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor".

Dentro da extrema restrição de meu saber, tive de esperar anos, meses de escrita, para poder aprender a lição da simplicidade. Não pude aplicá-la no presente texto, mas foi o mínimo que pude fazer para reconhecer a recompensa de minha mulher por ouvir Joaquín Rodrigo. Foram meses e meses de sacrifício mas de extrema realização pessoal. Só hoje sabemos.   



Um comentário:

  1. Diz o texto do Zezé: "utilize o mais simples e mais comum e então o cubra de ouro". Essa é a base fundamental da nossa relação. Construímos nesses 28 anos, uma relação baseada na simplicidade , mas longe de ser resumida ao simplório. A questão prejudicial de um entendimento simplificado é acreditar que tudo pode ser visto em dois tons. Nega-se o espectro multicolorido das diferenças. Lindas diferenças que, como nos disse Morin, são a base para o entendimento do pensamento complexo. E o texto do Zezé continua com a afirmação "lá porás o meu testemunho". Nosso testemunho está constantemente sendo posto e disposto a prova. Testemunhamos por meio da nossa lida diária. Testemunho o nosso amor quando pingamos o colírio no olhinho da Milu e quando controlamos a hora do João. Se não fôssemos moldados à madeira de acácia, nada teria sobrevivido

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