segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Memórias

Há pouco escrevi um texto dizendo que a verdade sobrevive. Mas é apenas uma crença, uma esperança. Agora, entender, ou mesmo especular, porque a verdade sobrevive, está intimamente ligado a sobrevivência da natureza. E não precisamos de profundos aportes de filosofia ou textos rebuscados; podemos ver na natureza a prova inconteste. Atacada por todos os lados, tendo sistemas extremamente complexos, de equilíbrio instável, sobrevive, se adapta, se acomoda sacrificando espécies, fazendo das mais rústicas, nem sempre as mais belas, o legado desda capacidade, e o registro histórico da sobrevivência.

A natureza voando na letra da música de Chico Buarque, "Passaredo", acabou virando nome de empresa aérea, voando aviões que atendem pelo nome de ATR 72. Já na natureza o vôo é acompanhado pelo canto e seus cantores atendem pelos mais prosaicos nomes: canário, viuvinha, tiê-sangue, cambaxirra, sanhaço, sanhaço-do-coqueiro, pintassilgo, coleiro, biquinho-de-lacre, cardeal, lavadeira, colibri, urutau, pardal, tico-tico, chapim, rolinha, quero-quero, bem-te-vi. Toda esta "troupe"  tem sobrevivido aos mais variados ataques, do pesticida à eliminação de seu habitat. Mas resiste, tal como a verdade.

A motivação e a reflexão sobre este tema veio no sábado, depois de ir ao barbeiro onde ia o meu amigo Franscisco, quando vinha caminhando pela movimentada rua Voluntários da Pátria. Lá em meio a trânsito de ônibus e toda a balburdia urbana, pousa próximo um bem-te-vi, espécie resistente e aguerrida que vi defendendo seu ninho bravamente frente a um gavião ( falconídeo, fica mais elegante ) malvado lá na floresta de Carajás. Cantava e cantava e seu canto me dizia claramente, "estou aqui, estou aqui", e porque viu que eu prestava atenção ao seu número respondia "bem-te-vi, bem-te-vi". Procurei a razão dele estar ali:- seu ninho ficava atrás de um letreiro enorme de uma loja de um internacional vendedor de jerk-food. Era o contraponto da verdade. 

Mas não bastou este encontro, caminho mais adiante e me deparo com uma borboleta "capitão-do-mato". Nem sei porque tem este nome, se pela beleza, se pelo grande tamanho. Lá voejava na rua já menos movimentada e mais arborizada. Belo espetáculo de azuis e movimento. A natureza insistia em sobreviver, resistia.

 A caminhada e as reflexões me remeteram ao "galo da madrugada", não pela proximidade do Carnaval, mas pelo blog que escrevi no dia 13 de junho de 2013, dia de Santo Antônio, santo casamenteiro, santo da prole, da sobrevivência, e me levavam não a biologia ou a filosofia, mas a simples memórias. É verdade que tais reflexões estavam ligadas aos princípios da auto-poiesis, complexa faculdade de se auto-criar, de se reinventar, decifrada por Varela e Maturana, biólogo e filósofo.  Ali estava o segredo do bem-te-vi e da capitão-do-mato, a adaptação, ainda que forçada, a contínua luta pela sobrevivência sempre se adaptando, mas lutando. 

Esta luta se faz pelo aprendizado, pela experiência, pela preservação da memória, pela valorização das memórias. Memórias, recurso de sobrevivência. 

Continuei caminhando recompondo a memória de meu amigo Francisco que me levou tão longe para cortar cabelo. Voltei caminhando e encontrando a verdade da natureza em meio ao caos das ruas. Minhas memórias, verdadeiras memórias, eram um sinal de vida.  

Não haverá verdade sem memória.  

  



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